O centro da pregação e da mensagem de Jesus – e portanto, de sua missão como enviado de Deus - está em seu ensinamento sobre o Reino de Deus. O evangelho de Marcos resumiu muito bem o que aqui afirmamos com estas palavras programáticas: "Quando detiveram João Batista, Jesus foi à Galiléia pregar de parte de Deus a boa notícia. Dizia: cumpriu-se o prazo, já chega o reinado de Deus. Convertam-se e creiam na boa nova" (Mc 1,14-15). Nestas palavras há dois elementos muito claros: por uma parte, a mensagem essencial de Jesus era sua pregação sobre o Reino; por outra parte, essa pregação sobre o Reino é a "boa notícia", o evangelho que Jesus tinha que proclamar. Por conseguinte, fica claro que o centro mesmo do evangelho é a pregação sobre o Reino de Deus.
Diante dessa constatação inicial, o papel da teologia é perguntar-se: o que queria dizer Jesus quando falava em Reino de Deus? O que equivale a perguntar: como entendeu Jesus sua missão?
Um Reino de justiça e de paz
Para começar do começo, há que observar o significado da palavra “Reino”. Como demonstrou muito bem Joachim Jeremias, consta com segurança que, para o oriental, a palavra hebraica malkut tinha um significado diferente da palavra "Reino" para o ocidental. No Antigo Testamento só muito poucas vezes malkut designa um reino em sentido local, um território. Na verdade designa quase sempre o poder de governar, a autoridade, o poderio de um rei. Mas não se entende nunca malkut em sentido abstrato. Pelo contrário, trata-se sempre de algo concreto que se está realizando. Por conseguinte, o Reino de Deus não é um conceito espacial nem estático, e sim um conceito dinâmico. Designa a soberania real de Deus exercendo-se de fato, em atos e em verdade.
Quando Jesus, em sua pregação, diz que Deus vai reinar e até mesmo que já está reinando, na verdade quer dizer que vai se impor e prevalecer no mundo e na história - e na verdade já está se impondo e prevalecendo - a intenção e o plano de Deus, a vontade de Deus, o que Deus efetivamente quer.Isso acontece porque é característico do rei, segundo o conceito antigo da realeza: o soberano é o que manda, e por isso realiza sua vontade.
Jesus pregou sua mensagem a um povo que vivia das idéias e das tradições do Antigo Testamento. Ao fazê-lo, partiu delas mas deu-lhes um conteúdo radicalmente novo. Por conseguinte, é preciso não se aferrar nem se deter somente em tais idéias e tradições para compreender o que Jesus queria dizer. Há um novo na pregação de Jesus que segue a tradição do Antigo Testamento mas o ultrapassa.
Segundo o Antigo Testamento, existia em Israel uma importante corrente de pensamento segundo a qual se desejava a vinda de um rei que por fim iria implantar na terra o ideal da verdadeira justiça (Sal 44; 72; Is 11,3-5; 32,1-3.15.18). Isso para os israelitas era o característico do rei: estabelecer e implantar a justiça no mundo, tal como se descreve no retrato do rei ideal dos salmos 45 e 72. Em conseqüência, o significado do rei estava determinado, para os israelitas, entre outras coisas, pelo sentido que a justiça tinha para eles E não se tratava de justiça no sentido do direito romano: dar a cada um o seu, emitir um julgamento imparcial. A justiça do rei, segundo as concepções dos povos do oriente, e também segundo as concepções de Israel desde os tempos mais antigos, consistia em defender eficazmente aquele que por si mesmo não pode defender-se. Daí decorre que a justiça consistia, para Israel, no amparo que o rei prestava —ou devia prestar— aos necessitados, aos fracos e aos pobres, às viúvas e aos órfãos .
Neste sentido, o testemunho mais claro sobre o que dizemos é o que nos oferece o salmo 72:
"Meu Deus confia seu julgamento ao rei,
sua justiça ao filho de reis:
para que reja a seu povo com justiça,
a seus humildes com retidão.
Que os montes tragam paz para seu povo
e as colinas justiça;
que ele defenda aos humildes do povo,
socorra aos filhos do pobre
e quebrante o explorador...,
porque ele libertará o pobre que pede auxílio
o aflito que não tem protetor,
ele terá piedade do pobre e do indigente,
e salvará a vida dos pobres;
vingará suas vidas da violência,
seu sangue será precioso ante seus olhos".
(Sal 72,1-4.12-14)
Neste impressionante texto se vê o sentido que tinha, para os israelitas, a idéia de justiça. E também a imagem do rei, que era quem tinha por missão implantar na terra semelhante justiça. Por isso, quando Jesus diz em sua pregação que já chegou o reino de Deus, o que em realidade queria dizer é que, por fim, vai se implantar a situação desejada por parte de todos os oprimidos da terra; a situação em que vai realizar-se efetivamente a justiça, quer dizer, o amparo e a ajuda para todo aquele que por si mesmo não pode valer-se, para aquele e aquela que não tem voz nem vez; para todos os deserdados da terra, para os pobres, os oprimidos, os fracos, marginalizados e indefesos. Por isso se compreende que, na pregação de Jesus, o Reino seja antes de tudo para os pobres (Lc 6,20), para as crianças (Mc 10,14), para os pequenos (Mt 5,19), em geral para todos os que a sociedade marginaliza e despreza.
Está claro que aqui se descreve o que poderíamos chamar de ideal de uma nova sociedade. Uma sociedade digna do ser humano onde finalmente se implanta a fraternidade, a igualdade e a solidariedade entre todos. E uma sociedade, além disso, em que o privilegiado e favorecido é precisamente o fraco e o marginalizado, que por si mesmo não pode defender-se . Daí se segue que o reino de Deus, tal como Jesus o apresenta, encarne a transmutação mais radical de valores que jamais se pôde anunciar. Porque é a mudança e a transformação, desde os alicerces, do sistema social estabelecido pelas sociedades humanas a partir do momento em que começaram a organizar-se. Este sistema, ontem como hoje, apóia-se na competição que elimina o adversário, na luta do mais forte contra o mais fraco e na dominação do rico e do poderoso sobre o que não tem bens nem poder. Frente a isso, Jesus proclama que Deus é Pai de todos igualmente. E se é Pai, isso quer dizer obviamente que todos somos irmãos. E se somos irmãos, filhos do mesmo Pai, temos obrigatoriamente que ser, por conseguinte, iguais e solidários uns para com os outros.
Neste sentido Jesus lança mão, em benefício da compreensão de seus ouvintes, do que acontece nas famílias. Em toda família, quem é o filho mais querido? É o menor até que cresça, é o doente até que sare, é o que está longe até que volte. Ou seja, é o menos protegido, o menos privilegiado, o mais fraco, o mais indefeso. Assim também acontece – ensina Jesus – na família de Deus. E o ideal do que representa o reino de Deus na pregação de Jesus consiste em anunciar que com sua pessoa, sua pregação e sua ação, esse estado de coisas não deve ser esperado para depois, para um longínquo futuro, mas é algo que já está acontecendo. Por isso Jesus anuncia o Reino e põe em prática um modo de agir – com curas, sinais, milagres – que visibilizam aquilo que anuncia, privilegiando as categorias mais desqualificadas em Israel: leprosos, doentes, crianças, mulheres, pecadores.
É obvio que este Reino de Deus não se reduz a um mero projeto de justiça social. Vai muito mais longe, uma vez que somente alcançará seu estádio definitivo na plenitude da vida, mais à frente, quando Deus seja tudo em todas as coisas. O projeto do Reino é de Deus, e portanto não se esgota nos limites do tempo e do espaço. Tem um conteúdo transcendente, como transcendente é o Deus de Israel, o Abbá de Jesus. Porém essa transcendência, que faz o Reino não se esgotar nos limites da história, se revela no seio desta história, nas situações concretas pelas quais passam diariamente homens e mulheres de toda sorte.
Além disso, o reino de Deus supõe e exige conversão, mudança de mentalidade e de atitudes (Mc 1,15 par), adesão incondicional à mensagem de Jesus (Mc 4,3-20 par), coração de pobre aberto e disponível para acolher sua pessoa e sua mensagem. Portanto, nesse sentido, exige interioridade. Mas aqui é fundamental compreender, de uma vez por todas, que nem o estádio último do Reino nem a interioridade que isso exige devem ou podem ser justificativas para manter neste mundo situações de injustiça quaisquer que sejam. Pelo contrário, o estádio definitivo do Reino será somente a consumação da nova sociedade antes sumariamente descrita e que deve prefigurar-se já neste mundo e nesta terra, nas condições de nossa sociedade atual.
De tudo o que foi dito seguem-se algumas conseqüências fundamentais. E a primeira delas é que o reino de Deus, na pregação de Jesus, não se referia de modo algum à idéia nacionalista que tinham os israelitas e que estava tão inserida e até mesmo confundida em seus sentimentos patrióticos, sobretudo dos grupos mais fanatizados, tais como zelotas e sicários. Jesus foi radicalmente claro a este respeito. Jamais, em sua pregação, deu margem para que o Reino de Deus se interpretasse nesse sentido nacionalista. Pelo contrário, sabemos que Jesus defraudou e até irritou positivamente os extremistas nacionalistas, como consta expressamente na passagem narrada pelo evangelho de Lucas quando pregou na sinagoga de Nazaré (Lc 4,14-30). E, em geral, seus ensinamentos no Sermão da montanha, quando falou do amor aos inimigos com um claro discurso não violento (Mt 5,38-48), eram doutrinas que contradiziam frontalmente os postulados dos revolucionários daquele tempo. Decididamente, a proposta do reino apresentada por Jesus não passa pelo caminho de nenhum nacionalismo político, nem tampouco pela via das alianças com os poderes deste mundo. Menos ainda o Reino de Deus pode ser alcançado por meios violentos, semeando morte, guerra, sangue e luto. Por isso o reino de Deus não se identifica com nenhuma situação sócio-política determinada. E assim é até hoje. Nenhum regime político, por mais que reivindique para si mesmo o estatuto de cristão, pode ser apontado como concretização ideal do Reino, que é histórico mas também é transcendente. E o Reino de Deus tampouco consiste em uma situação que vá se implantar pela força das armas ou o poderio dos exércitos. Menos ainda em uma espécie de golpe militar, que pelo poder das armas faça com que as coisas mudem. Tudo isso está nas antípodas da mensagem de Jesus.
Por outro lado o Reino de Deus, tal como o apresenta Jesus, não era nem podia ser o resultado concreto da aplicação e da vivência ao pé da letra da lei religiosa de Israel. Este ideal da lei estava muito vivo em certos setores do povo judeu em tempos de Jesus . A isso se reduzia, em síntese, a aspiração de muitos grupos mais radicais e fundamentalistas, entre os quais algumas correntes do farisaísmo e outros. Aí também Jesus defrauda as aspirações de seu tempo e de boa parte de seu povo a esse respeito. Jesus vai mostrar durante todo o seu ministério público que o projeto do Reino de Deus não pode ser cerceado por nenhum modelo de projeto humano, mesmo que seja religioso e se apóie na religião de Israel, que era a do próprio Jesus.
No mesmo sentido há que se dizer que o Reino de Deus não é tampouco apenas o resultado de uma prática fiel e observante das obras religiosas: o culto, a piedade, os sacrifícios e os rituais. Jesus não se refere a isso em sua pregação e, relativizando as instituições e práticas religiosas estabelecidas, coloca em questão todo o sistema religioso do judaísmo oficial de seu tempo. Com essa atitude frustrou também as idéias e aspirações de muitos homens de seu povo e de seu tempo: sacerdotes, saduceus, e possivelmente alguns grupos de essênios.
Em última instância, age assim porque o Reino de Deus, como já foi dito antes, é a boa notícia. Concretamente é a boa notícia para os pobres e todos aqueles que sofrem, perseguidos e marginalizados. E é claro que a única "boa notícia" que se pode dar a tais pessoas é que vão deixar de ser pobres, vão deixar de sofrer e vão sair de sua situação desesperada. Suas lágrimas vão ser enxugadas, sua vida vai ter sentido. Vão se sentir acompanhados e amparados. Não serão mais humilhados nem viverão expostos a todo tipo de perseguições e perigos. Aí está a significação mais profunda do Reino de Deus na pregação de Jesus e em seu sentido histórico, concreto e teológico para nós .
Finalmente, é importante destacar que, a partir de tudo o que foi dito, compreende-se por que o Reino de Deus é algo contra o qual se usa a violência, como diz o próprio Jesus (Mt 11,12; Lc 16,16). Não se deve entender isso no sentido de que o Reino deva ser arrebatado à força ou que todos os meios são legítimos para alcançá-lo. Mas significa que o Reino de Deus é algo que tem que suportar o conflito e a contradição. Simplesmente porque todos os que desfrutam de certo “status” de vida e se vêem privilegiados na sociedade presente não querem perder o que têm, nem desejam o advento da outra sociedade. E não a querem porque não desejam perder seus privilégios, seu conforto, seu estilo de vida próspero e confortável. Por isso a pregação do Reino de Deus é algo pelo qual não se pode lutar e que não se pode realizar impunemente e sem riscos. Pregar o Reino é pregar a mudança radical da situação em que vivemos. E é, por isso, ameaçar diretamente esta ordem de coisas que não corresponde ao desejo de Deus. Jesus anunciou as perseguições, as prisões e a morte a seus discípulos devido a sua fidelidade ao Reino (Mt 10,16-33 par). Disse-lhes que tinha que ser assim. E para Ele mesmo foi assim. Porque o Reino de Deus, que é a promessa melhor que se pode fazer ao mundo, é também, e por isso mesmo, a ameaça mais radical para a ordem constituída sobre a base da injustiça e da desigualdade. Aquele que pelo Reino se apaixonam e a ele entregam suas vidas devem preparar-se para não ser compreendidos e para sofrer como Jesus sofreu. O Reino não se dá de maneira tranqüila e confortável mas coloca seus defensores e porta-vozes no epicentro de todos os conflitos. Ainda que não usem de violência, a violência andará no seu encalço.
Um Reino que é de Deus dado a nós como graça
O projeto de Jesus – que é do Pai, por ele assumido como enviado por esse mesmo Pai - se não pode ser reduzido a uma ideologia ou a uma práxis revolucionária qualquer, tampouco pode ser reduzido a uma moral individualista ou a uma mera religiosidade. Apenas com serviços religiosos não se transforma a sociedade. Não só a experiência e a vida, mas também e além disso a pregação e a ação de Jesus são um argumento definitivo, neste sentido.
O evangelho jamais afirma que apenas com serviços e rituais religiosos vai se conseguir que Deus reine efetivamente no mundo. Pelo contrário, muitas vezes se poderia interpretar a partir das páginas dos evangelhos que os serviços religiosos, embora necessários para significar a prática transformadora, podem, entretanto, carregar em suas entranhas um perigo. O perigo de que se procure aproveitar a influência e o poder que se tem sobre as consciências das pessoas para manipulá-las e dominá-las; o risco de que, ao ver que as pessoas freqüentam os templos, os dirigentes religiosos se sintam satisfeitos e cheguem a pensar que assim cumprem com sua missão no mundo e na sociedade; o perigo de achar que a fidelidade a Deus se resume ao cumprimento de uma série de ritos que, ao não carregarem consigo um compromisso concreto com a justiça, são vazios e mentirosos. As liturgias e os rituais podem dar a impressão enganosa de que a vida espiritual e religiosa funciona razoavelmente bem, e tender a esquecer que, assim fazendo, se passa ao largo e à distância daquilo que é o caminho concreto de Jesus de Nazaré e, portanto, de seu seguimento.
O projeto do Reino de Deus tampouco consiste apenas na prática da caridade, tal como se está acostumado a entender esta prática. Muitas vezes, com efeito, a prática da caridade assistencialista e paternalista, reduz-se a manter boas relações interpessoais com os subordinados e empregados, a ajudar o próximo em alguma obra assistencialista e depois continuar vivendo bem e confortavelmente com a consciência aplacada porque se tirou do supérfluo que não fazia falta para dar aos pobres que nada possuem. É obvio que tanto as relações interpessoais como a ajuda ao próximo, seja sob que forma seja, são coisas importantes e que devem ser levadas muito a sério. Jesus também fazia isso. Mas apenas mediante isso não se transforma a sociedade em que vivemos. As boas relações interpessoais e a prática da caridade assistencialista podem facilmente enganar os que as praticam, porque podem dar a ilusão de que as coisas acontecem como têm que acontecer, quando em realidade trata-se de transformar na sua raiz o mundo e a sociedade em que se vive, simplesmente porque esta não está conforme com o coração de Deus e o projeto de seu Reino. Decididamente, as exigências do Reino não se satisfazem apenas mediante a prática da caridade, no sentido indicado. É preciso chegar até a solidariedade, a igualdade verdadeira, a fraternidade incondicional, em um sistema de convivência que faça tudo isso realmente possível e viável.
Por outro lado, tudo isto nos indica claramente que o projeto do Reino de Deus é uma utopia, no sentido mais estrito dessa palavra. Utopia, com efeito, segundo a etimologia da palavra, é o que ainda não tem lugar, ainda não acontece. Mas isso não quer dizer que é impossível, irreal, puramente imaginário, romântico e onírico. Assim pensando, se desqualifica o que incomoda e desinstala e se reduz a nada o que ainda não é declarando que não pode ser. Essa maneira de pensar é ideológica, ou seja, geradora de falsa consciência, porque apresenta as coisas como realmente não são. A utopia se pode conceber de outra maneira muito diferente, já que se pode entender como a antecipação do futuro, de um futuro melhor, um futuro verdadeiramente justo e digno do homem. Na verdade a utopia é o motor da história, pelo fato de que é ela que aviva os ideais e dá força aos projetos. E isso justamente é o que acontece com o projeto do Reino. É a utopia que não é somente intra-histórica, mas que, sendo transcendente, dá forças para transformar a história segundo o coração de Deus.
Pode-se portanto afirmar, com todo direito, que o projeto do Reino de Deus é uma utopia. Trata-se de um projeto que antecipa um futuro melhor. Mas essa utopia, que é o projeto de Jesus, é possível. É realizável. Porém ela não vai se dar por um passe de mágica ou como resultado de um prodígio que Deus realiza sem nossa colaboração. O projeto do Reino se fará realidade na medida em que os cristãos tenham fé em que esse projeto é realizável. E sobretudo, na medida em que os que cremos em Jesus nos dediquemos a realizá-lo. Embora custe suor e sangue como aconteceu com muitos projetos na história da humanidade.
O projeto do Reino de Deus será sempre utópico, ou seja, será sempre algo não plenamente realizado na história. Esse projeto aponta para uma meta tão perfeita que será sempre algo irrealizável plenamente na condição histórica do ser humano. Sempre nos aproximaremos dele e sempre será algo não alcançado plenamente. Em sua realização total, é um projeto-meta histórico. Sempre haverá homens e mulheres que se aproximem dele, que cheguem mais próximos de seus requisitos e características, mas de tal maneira que sempre estarão longe de sua realização total.
O projeto do Reino não se pode implantar em nível de toda a sociedade. Por uma razão muito simples: o projeto do Reino de Deus não se pode implantar pela força da imposição coletiva. Tem que vir através da conversão dos corações e das consciências. O Reino de Deus se fará realidade na medida em que haja homens e mulheres que mudem radicalmente sua própria mentalidade, sua escala de valores, sua relação prática e concreta com o dinheiro, o poder e o prestígio. Porém isso não se dará em nível de toda a sociedade sem cair no totalitarismo e na repressão. Neste sentido se compreende facilmente em que consiste a alternativa que representa o projeto do Reino de Deus com relação aos sistemas estabelecidos. A liberdade e a igualdade são termos dialéticos. Se se privilegia um, exclui-se o outro, quando ambos pretendem impor-se em nível de toda a sociedade. Assim ocorreu nos países que implantaram o socialismo real: se impôs uma determinada igualdade, mas à custa da repressão da liberdade. Nos países capitalistas se privilegia a liberdade, mas com base em terríveis desigualdades. Nem um nem o outro podem ser mediação do Reino de Deus.
Diante disso não há outra alternativa do que o projeto daqueles que, com plena liberdade, propõem-se estabelecer entre eles mesmos a mais plena igualdade. Por aí passa o projeto de Jesus, do Reino de Deus. Do contrário, não há mais saída senão a repressão e o totalitarismo, a violência e a tortura. Mas é claro que isso seria o atentado mais brutal e mais direto contra o projeto de Jesus. Neste sentido têm razão os que pensam que as utopias podem desembocar facilmente no totalitarismo. O exemplo dos regimes comunistas foi eloqüente em nosso século a este respeito . Assim também e com outro perfil o dos vários capitalismos de ontem e de hoje. O projeto de Jesus vai por outro caminho e tem um sentido muito diferente .
A comunidade cristã: artesã do Reino
Se o Reino de Deus é dom e graça e deve ser acolhido e recebido na pessoa de Jesus, também é missão e tarefa. Jesus empenhou todas as suas forças neste projeto e ensinou àqueles e àquelas que o seguiam a fazer o mesmo.
O que fez Jesus para que o reino de Deus não fosse apenas um ideal pregado, mas sim uma realidade divina acontecida na história? Qual foi a missão de Jesus? Não podemos deter-nos somente no que Jesus disse, mas sim também no que ele fez. Desde esta perspectiva, a primeira coisa que chama a atenção é a surpreendente originalidade de Jesus. Naquele tempo havia diversas respostas à questão de como aproximar-se de Deus e fazer sua vontade: os saduceus dedicavam-se ao culto e às obras da religião; os fariseus punham todo seu empenho na fiel observância da lei religiosa; os essênios se entregavam à ascese e à piedade individual; os zelotas praticavam a revolução violenta, porque só dessa maneira acreditavam que se podia remediar a situação.
Jesus não entrou por nenhum desses caminhos. Não foi um sacerdote dedicado ao culto do templo e às obras religiosas. Também não foi um fariseu no sentido estrito da palavra que só se preocupava e pregava a observância da lei religiosa. Não se entregou a uma vida ascética na solidão do deserto ou na comunidade de Qumran. Tampouco foi um revolucionário violento e nacionalista,um zelota ou um sicário. Como já vimos, Jesus ultrapassa todos os esquemas, ao mesmo tempo em que os rompe de forma provocadora. Aí radica sua profunda liberdade: veio cumprir a vontade de Deus e nada mais. E a vontade de Deus para Jesus é bem clara: o bem das pessoas. Buscar de todo coração e com todas as forças esse bem foi a missão fundamental de Jesus. Para isso deu a vida, por isso morreu . Por causa disso foi ressuscitado e confirmado definitivamente por Deus seu Pai.
A primeira coisa que Jesus fez, ao iniciar seu ministério apostólico, foi reunir uma comunidade: um grupo de pessoas que caminharam e viveram sempre com ele e como ele. Isso aparece claramente tanto nos evangelhos sinóticos (Mt 4,18-25; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11) como no evangelho de João (Jo 1,35-51). Por isso se compreende a extraordinária freqüência com que a palavra "discípulo" aparece nos quatro evangelhos: 73 vezes em Mateus; 46 em Marcos; 37 em Lucas e 70 em João. Concretamente Marcos – o mais antigo dos evangelhos que chegou até nós – durante a maior parte do relato narra palavras e atos de Jesus em que os discípulos estão presentes e sempre que se fala dos discípulos, em realidade do que se está falando é da comunidade que Jesus reuniu em torno de si. O fato mesmo da existência da comunidade de discípulos que Jesus reuniu constitui um dado de importância decisiva para o entendimento do evangelho.
Esta comunidade de discípulos, tal como aparece nos evangelhos, era um grupo relativamente amplo. Não se limitava apenas “aos doze". Assim consta expressamente em Mt 8,21 e 27,57. O mesmo se dá em Mc 4,10 e 10,32. Pode-se afirmar que foi um grupo relativamente numeroso: setenta e dois deles foram enviados por Jesus a uma missão especial (Lc 10,1.17); em outras ocasiões se fala de um grupo grande (Lc 6,17; 19,37; Jo 6,60), muitos dos quais voltaram atrás e deixaram de seguir Jesus (Jo 6,66). No grupo havia homens como Leví, o filho de Alfeu (Mc 2,14); José, apelidado Barsabá, e Matias que depois ocupará o lugar deixado vago por Judas nos Atos dos apóstolos (At 1,23); também havia mulheres (Lc 8,1-3; Mc 15,40-41), provavelmente muitas viúvas, já que dispunham de seus bens, coisa não permitida para a mulher daquele tempo enquanto estivesse casada.
Em repetidas ocasiões, os evangelhos distinguem nitidamente este grupo do povo em geral (Mt 9,10; 14,22; Mc 2,15; 3,9; 5,31; 6,45; 8,34; 9,14; 10,46). Tratava-se, portanto, de um grupo de pessoas, diferenciadas do resto do povo, com vínculos que as uniam muito estreitamente, afetiva e efetivamente. Pode-se, por conseguinte, afirmar que constituíam uma comunidade.
Como sabemos, Jesus escolheu doze dentre os membros desta comunidade (Mt 10,1-2; 11,1;20,17; 26,20; Mc 3,14-16;4,10;6,7; 9,35; 10,32; Lc 6,13; 8,1; 9,1; 18,31; Jo 6,67-71; 20,24). A estes doze discípulos confiou uma missão e poderes especiais (Mt 10,7; Mc 1,22.37; 2,10; 11,28-29.33). Após a Ressurreição, comunicou-lhes o Espírito (At 2,1ss), que fora prometido (Lc 24,49; At 1,5.8), para que fossem suas "testemunhas" em todo o mundo (At 1,8). De fato, estes "doze" desempenharam uma função de primeira importância na constituição da Igreja (cf. 1Cor 15,5; Ap 21,14). Porém, há que ter consciência que os "doze", além da função histórica que desempenharam na organização e estrutura da Igreja, tinham evidentemente uma dimensão simbólica: representavam as "doze tribos" de Israel (Mt 19,28; Ap 21,14. 20), ou seja, simbolizavam a plenitude do novo povo de Deus inaugurado por Jesus, o novo Israel. Dito mais claramente, da mesma maneira que o povo de Israel tinha sido a expansão e a multiplicação dos doze filhos de Jacó, assim também a Igreja, novo povo de Deus, não era outra coisa senão a posteridade e o desenvolvimento dos doze apóstolos encarregados da transmissão do evangelho de Jesus.
A intenção primeira de Jesus, portanto, foi constituir uma comunidade. Dentro dela os doze desempenharam uma missão particular. A Igreja, no entanto, é a comunidade toda inteira. Os doze não são anteriores e exteriores à comunidade. Surgem dentro dela e por causa dela e estão a serviço dela. Sem a comunidade, cada um dos doze como indivíduo não tem sentido e razão de ser enquanto testemunha. A primeira providência de Jesus para levar a cabo a missão para a qual o Pai o enviou foi, portanto, formar uma comunidade de discípulos.
Jesus e os seus: o Reino já acontecido na história
Os relatos evangélicos mostram que a condição indispensável para entrar e formar parte do grupo de Jesus é a renúncia ao dinheiro e, em geral, a todas as posses efetivas e afetivas, a tudo o que se tem afetiva e efetivamente. Assim, com efeito, os evangelhos narram as condições do ingresso no grupo da primeira hora , quando Jesus começa a reunir discípulos em torno de si: Pedro e André "deixaram imediatamente as redes e o seguiram" (Mt 4,20 par); os filhos de Zebedeu "deixaram imediatamente a barco e seu pai e o seguiram" (Mt 4,22 par). Ao mestre da Lei que lhe pediu entrar no grupo, Jesus lhe respondeu: "As raposas têm tocas e os pássaros ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça" (Mt 8,19-20 par) para preveni-lo bem que entrar no seu caminho equivalia a renunciar mesmo aos apoios e seguranças mais legítimas.
Sua exigência é radical e válida para todos os que chama. Mateus deixou no mesmo instante seu negócio escuso de cobrança de impostos e o seguiu (Mt 9,9 par). Em todos estes casos o que realmente ocorreu é que aqueles homens abandonaram efetivamente tudo o que possuíam para assumir o estilo de vida de Jesus. Assim o reconheceu Pedro mais tarde, em nome dos outros: "Nós já deixamos tudo e te seguimos" (Mt 19,27 par). A ênfase não está tanto no desprendimento afetivo, mas no despojamento efetivo. Aqueles homens, efetivamente, ficaram sem nada. Deixaram tudo para trás e fizeram de Jesus e seu reino sua vida e seu destino.
A mesma exigência inicial de despojamento total volta a aparecer quando Jesus envia os discípulos em missão, tanto no caso dos doze (Mt 10,5) como quando enviou um grupo mais numeroso, os setenta e dois (Lc 10,1). As palavras de Jesus são fortes e contundentes: “Não leveis nem ouro, nem prata, nem dinheiro em vossos cintos, nem mochila para a viagem, nem duas túnicas, nem calçados, nem bastão; pois o operário merece o seu sustento. “(Mt l0, 9-10); "não levem bolsa, nem alforje, nem sandálias" (Lc 10,4). Ser enviado por Jesus e anunciar seu Reino implica estar livre de todas as ataduras e amarras tal como ele esteve e assumir seu destino de insegurança e errância que tem como único apoio e suporte o Deus do Reino.
Sem dúvida alguma, onde aparece com mais evidência esta condição indispensável de admissão na comunidade é no caso do jovem rico. Jesus o olha e o ama. É um bom rapaz, temente a Deus e cumpridor da lei. Porém falta-lhe uma coisa essencial para seguir Jesus. E o primeiro passo que lhe é exigido para seguir a Jesus e entrar no grupo é vender tudo o que tem e dá-lo aos pobres (Mt 19,21). Convém notar que esta exigência de renunciar a tudo é condição necessária não para herdar a vida eterna e salvar-se, mas sim para entrar no Reino de Deus. Isso é o que Jesus diz quando afirma: "Mais fácil é que entre um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico no Reino de Deus" (Mt 19,24). Ou seja, é impossível que um rico, alguém que serve ao dinheiro (Mt 6,24), entre na comunidade. Assim também isso não é possível com relação aos outros apegos: às pessoas, às propriedades, ao prestígio. Tudo deve ser abandonado ou relativizado para que apenas Deus reine e Jesus seja o único Mestre.
Este ideal evangélico de desprendimento e pobreza não consiste apenas na renúncia pela renúncia, como um valor ascético aceitável em si mesmo. É mais que isso. Trata-se do ideal de compartilhar o que se tem com os que não têm, sejam ou não sejam do grupo. Na comunidade de Jesus havia uma bolsa comum (Jo 12,6). Jesus educou os discípulos nesta nova mentalidade de pôr a serviço de todos o que tinham e possuíam. Isso se vê claramente no relato da multiplicação dos pães (Mc 6,30-46 par). A reação primeira e muito humana dos discípulos diante de uma multidão enorme de gente faminta é mandar toda aquela gente comprar algo para comer (Mc 6,36). Esperam, como é natural e humano, que cada um cuide de si e providencie algo que possa saciar sua fome. Trata-se, como é natural, do dinheiro como meio de subsistência. Frente a isso, o que Jesus propõe é: "dêem-lhes vocês mesmos de comer" (Mc 6,37). Ou seja, compartilhem com eles o pouco que têm. E a partir daí, mediante esse gesto, produz-se o milagre da abundância, até que todos se saciem e haja sobras que ainda são capazes de encher até doze cestos (Mc 6,42-44. E também Mc 8,1-10; Mt l5, 32-39).
A condição indispensável de admissão no grupo cristão, portanto, é a renúncia a pôr sua segurança no dinheiro ou em qualquer apoio humano. A comunidade de Jesus se constrói sobre a base da partilha. Não é um grupo que se reúne para amealhar e acumular. Mas pelo contrário, uma comunidade de pessoas que sabe que apenas dando e partilhando o que tem e o que é encontra a realização e a plenitude de sua vocação de comunidade humana. Apenas em base a isto se pode construir a comunidade cristã. Nela o projeto de compartilhar tem que substituir o projeto humano de possuir, guardar e acumular. Jesus quer uma sociedade nova e diferente, assentada sobre outras bases. Para isso aponta o projeto do Reino de Deus. E em sua pessoa, em seu projeto de vida e na comunidade por ele fundada, esse Reino já está acontecendo como testemunho para o mundo a fim de que todos vejam e constatem que é possível viver assim e ser feliz.
O programa de vida e ação da comunidade de Jesus é a prática das bem-aventuranças (Mt 5,3-12; Lc 6,20-26). Tanto Mateus como Lucas situam esta proclamação programática de Jesus como dirigida apenas aos discípulos e não às multidões (Mt 5,1; Lc 6,20). Os contextos são muito significativos: o texto de Mateus vem imediatamente após a convocação dos primeiros seguidores (Mt 4,18-25) e no começo do grande discurso de proclamação do Reino de Deus (Mt 5-7); Lucas o situa em seguida à escolha dos doze (Lc 6,12-16) e quando Jesus se reúne com outro grupo numeroso de discípulos (Lc 6,17). Trata-se, portanto, do programa básico que Jesus apresenta à sua comunidade. Não é para todos, mas para aqueles que têm a missão de fazer o projeto de Deus, seu Reino, tornar-se realidade na história humana.
A primeira coisa que aparece neste programa, prometida por Jesus a seus discípulos é a felicidade ou seja, a bem-aventurança. O Sermão da Montanha, com o discurso das Bem-Aventuranças é a Carta Magna do Reino de Deus. Todas as afirmações de Jesus proclamam que são bem-aventurados, felizes, os que estão nas antípodas das situações que o mundo considera felizes: os que são pobres, mansos, perseguidos, que choram, etc. Trata-se portanto de uma felicidade que não provém dos valores que o mundo considera necessários para ser feliz, mas justamente o contrário. Por conseguinte, o programa do grupo cristão implica em uma total transmutação de valores. A missão de Jesus tem como objetivo, acima de tudo e, sobretudo, refazer o ser humano a partir de dentro, a fim de devolver-lhe a alegria e a paz.
O programa de vida que Jesus propõe a sua comunidade consiste, antes de tudo, em escolher ser pobres (primeira bem-aventurança: Mt 5,3; Lc 6,20), para ter de verdade somente a Deus por rei. Trata-se da condição de admissão no grupo cristão. Jesus aceita entre os seus somente a quem não reconhece como absolutos: nem o dinheiro, nem o prestígio, nem o poder, mas unicamente Deus.
As conseqüências da adesão a este programa de vida serão : em primeiro lugar, os que sofrem vão deixar de sofrer (segunda bem-aventurança: Mt 5,4; Lc 6,21); em segundo lugar, os oprimidos vão sair de sua situação humilhante e humilhada (terceira bem-aventurança: Mt 5,5); em terceiro lugar, os que têm fome e sede de justiça vão ser saciados (quarta bem-aventurança: Mt 5,6). Estas promessas de Jesus expressam a abundância característica dos tempos messiânicos, que plenificam as aspirações humanas para além do necessário até o transbordamento das expectativas vitais.
As três bem-aventuranças seguintes expõem as razões profundas desta situação surpreendente . Sobretudo o que é dito na quinta bem-aventurança: “Bem aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia" (Mt 5,7). Na comunidade de Jesus a ninguém vai faltar nada, porque tudo vai estar à disposição de todos. E isso porque, segundo a sexta bem-aventurança, na comunidade todos serão pessoas de coração puro e limpo (Mt 5,8), pessoas sem má intenção, sem idéias distorcidas e olhares enviesados, pessoas verdadeiras, incapazes de traição. Por isso tais pessoas "vão ver a Deus". Esta expressão quer dizer que os membros da comunidade serão pessoas que existem para servir aos outros.
Na sétima bem-aventurança, Jesus elogia os membros da comunidade porque trabalharão e construirão a paz (Mt 5,9). A comunidade cristã vai ser uma fonte de reconciliação e de harmonia entre os homens, de tal maneira que assim se instaurará uma ordem nova, não apoiada sobre a repressão , a competição e a violência , mas repousando sobre a humildade e a aceitação incondicional do outro. O evangelho certamente tem em mente aqui regular a ação do grupo naquela sociedade onde estão inseridos, não apenas a nível interpessoal (reconciliar os indivíduos entre si), mas também em âmbito social e político, que tão fortemente condiciona a convivência humana.
A última bem-aventurança elogia os que "vivem perseguidos por sua fidelidade" (Mt 5,10). A razão desta perseguição está em que a ordem presente (o "mundo") não tolera de maneira nenhuma o programa de vida e ação que a comunidade vive. Portanto, praticar o programa da comunidade de Jesus é algo que não se pode fazer impunemente e sem riscos ou perigos. O mundo se sente ameaçado por pessoas que comunitariamente não aceitam o dinheiro, o poder e o prestígio como bases da organização social.
Jesus, carinhosa e pedagogicamente, prepara seus discípulos para as perseguições e os sofrimentos que certamente virão e adverte-os que deverão sentir-se felizes quando isto lhes acontecer, pois significará que estão sendo fiéis ao Mestre e seu projeto, testemunhas puras e santas de Deus e Seu Reino.
Jesus e a comunidade do Reino de Deus: paradigma de uma nova humanidade
Na comunidade de Jesus se exige uma atitude fundamental: o serviço a outros. A afirmação de Jesus neste sentido é radical e não deixa lugar a dúvidas: "Sabem que os chefes das nações as tiranizam e que os grandes as oprimem. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser ser o primeiro, seja servidor de todos; e o que queira ser o primeiro, seja escravo de todos. Porque este homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por todos" (Mt 20,25-28 par).
O tema do serviço aparece aqui em contexto duplamente polêmico: o serviço de Jesus e seus discípulos se opõe a uma dupla dominação: política e religiosa. Trata-se não só de rejeitar o estilo e a forma da dominação política, mas também a ambição e o autoritarismo dos líderes religiosos. Em realidade, na teocracia que é Israel, ambas as coisas andam unidas e configuram o sistema político-religioso no qual viviam Jesus e seus discípulos.
Contrariamente ao que acontecia na sociedade daquele tempo, e em contraste também com o que continua acontecendo em nossa sociedade, Jesus não tolera que ninguém se imponha a ninguém na comunidade. Justamente o contrário: no Reino anunciado por Jesus é condição básica ficar em último lugar: "Asseguro-lhes que se não se converterem e se comportarem como estas crianças, não entrarão no Reino de Deus; ou seja, qualquer um que se faça pequeno como este menino, esse é o maior no Reino de Deus" (Mt 18,3-5 par). Já vimos acima que na sociedade judaica do tempo de Jesus, a criança é o ser que não conta, que não tem nenhuma importância, de tal maneira que se alinhava com os surdos-mudos e os idiotas. Portanto, Jesus afirma que na comunidade os primeiros têm que ser os mais desprezados, os que são considerados inúteis e desprestigiados, a quem são designados os serviços mais humildes.
Na comunidade de Jesus, portanto, não pode haver ambição ou desejo de poder ou dominação. Por isso Jesus proíbe aos seus a utilização de títulos honoríficos: "pai", senhor, mestre, doutor", etc. são termos proibidos em Mt 23,8-10 (cf. tb. Mt 20,26-27; 23,11; Mc 9,35; 10,43-44; Lc 22,25; Jo 15,131524). Pelo contrário, na comunidade, diz Jesus, "todos vocês são irmãos" (Mt 23,9) e "o maior de vocês será o servidor de todos" (Mt 23,11). Daí se segue que no grupo cristão deve reinar a mais absoluta igualdade e caridade, até o ponto em que nem sequer Jesus se comporta como "Senhor" (Jo 13,13) e chama os discípulos "amigos" (Lc 12,4; Jo 15,15) e "irmãos" (Mt 28,10; Jo 20,17. Cf. tb. Paulo em 1Cor 3,21-23; ROM 14,7-9; Gal 3,27; Col 3,11).
Seguir a Jesus, portanto, segundo os evangelhos, não é uma estratégia para assegurar a salvação das almas em outra vida após a morte, entendendo-se que a alma é a parte superior do ser humano, devendo o corpo estar relegado a segundo plano ou até mesmo desprestigiado e esquecido. O seguimento de Jesus e a pertença a sua comunidade implica uma extrema atenção e uma disponibilidade incondicional para servir as necessidades básicas, materiais e corpóreas dos seres humanos: dar pão aos que têm fome, água aos que têm sede, vestir os nus, evangelizar os pobres e libertar os cativos.
Tampouco se trata de um programa para santificar almas mediante uma conversão apenas individual e interior dos corações. Jesus não se limitou a converter os indivíduos, mas desde o primeiro momento deixou claro que Deus seu Pai tinha um projeto que ultrapassava em muito os limites da subjetividade pobremente pessoal. Trata-se de um projeto para transformar a realidade no sentido do senhorio de Deus, a construção de uma nova humanidade. Para isso se dedicou a formar um grupo de discípulos aos quais, cada vez mais e mais, dirigiu sua atenção e sua mensagem. Neste grupo se viveu o despojamento e o desapego total dos bens, compartilhou-se o que cada um tinha, procurou-se que ninguém se impusera aos outros, conviveu-se com Jesus, com seu estilo e sua forma de comportar-se diante dos ricos e dos pobres, diante dos dominadores e dos dominados, diante da religião estabelecida e diante dos poderes públicos. Procedeu-se com ele como ele a fim de visibilizar no mundo a vontade de Deus e seu projeto.
Com isso Jesus em seu ministério público oferece um novo paradigma para a humanidade. Sua pessoa expõe e propõe um novo modo de ser humano e de construir a sociedade humana, diferente dos padrões que o mundo propõe. A comunidade por ele convocada apresenta uma alternativa ao modelo de convivência e de sociedade em que vivemos. Frente à convivência e à sociedade apoiadas no ter, no prestígio e na soberba, Jesus oferece a alternativa da comunidade cristã, apoiada na partilha, no serviço e na solidariedade. O pequeno rebanho de Jesus pretende ser uma alternativa válida aos princípios e valores sobre os quais se assenta a sociedade e o sistema vigente. A partir desses princípios e valores é que se deve organizar a vida humana sob todos os seus aspectos, inclusive em termos de atuação política.
A missão fundamental de Jesus consistiu, portanto, no anúncio do Reino e na formação de uma comunidade que visibilizasse esse Reino para o mundo e a humanidade. Jesus viu claramente, desde o primeiro momento, que o mais urgente para a implantação do Reino de Deus é a existência de uma comunidade que viva e pratique os princípios e os valores do Reino. Nem as práticas religiosas por si só, nem as formulações dogmáticas teológicas sozinhas, nem a observância da lei por si só, nem a ascese individual por si só, nem tampouco a revolução violenta em nenhuma de suas formas são instrumentos adequados para a implantação do reino de Deus. Só quando os homens fazem comunidade, reproduzindo o modelo da comunidade de Jesus, pode-se dizer que estamos construindo o Reino de Deus.
Mas a missão de Jesus não se reduziu somente a formar a nova comunidade de salvação. Sua atividade em favor do projeto do Pai foi muito mais longe. Ele sabia perfeitamente que o inimigo número um do projeto do Reino de Deus é o sistema estabelecido sobre o dinheiro, o poder e o prestígio. E sabia também que os dirigentes do sistema são, e têm que ser, os mais encarniçados inimigos de seu projeto e de sua comunidade. Por tudo isso, os enfrentamentos entre Jesus e esses dirigentes do povo não demoraram a vir. Apareceram e aconteceram logo que Jesus começou a pregar e a pôr em ação seu projeto. Disso nos dá testemunho o evangelho de Marcos: os conflitos começam quase desde o primeiro momento (Mc 2,1-12.13-17.23-28; 3,1-6; 8,11-12 par).
Na verdade, o conflito esteve sempre presente na vida e na pessoa de Jesus e configurou seu ministério público . Apesar de certa espiritualidade sempre ter procurado dar-nos outra imagem e outra idéia disto, sempre lemos nos evangelhos o relato das palavras duras de Jesus contra os fariseus e contra os sacerdotes. A lista de ataques, e denúncias, muito fortes, é impressionante: Jesus os chama assassinos (Mc 12,1-12) e lhes diz que Deus lhes tirou o Reino (Mt 21,3346); compara os dirigentes com crianças insensatas e inconseqüentes (Mt 11,16-19; Lc 7,31-35); diz-lhes que são uma "raça de víboras" e más pessoas (Mt 12,34)26; chama-os "gente perversa e idólatra" (MT 12,39); joga-lhes constantemente no rosto que são uns hipócritas (Mt 6,1-6.16-18; 15,7; 23,13.15.23.25.29; Lc 13,15) e que seu fermento é a hipocrisia (Lc 12,2); chama-os cegos e guias de cegos (Mt 15,14; 23,16.19.24); diz-lhes que são néscios (Mt 23,17) e "sepulcros caiados" (Mt 23,27) ou "túmulo sem sinal" (Lc 11,44), insensatos cheios de roubos e maldades (Lc 11,3941) e que além disso são incorrigíveis (Mt19,8), que o culto que praticam é inútil (Mt 15,8-9). Assegura que os publicanos e as prostitutas são melhores que eles (Mt 21,31-32) e que passam por cima da justiça e do amor de Deus (Lc 11,42); aos juristas diz com desassombro que afligem as pessoas com fardos insuportáveis, enquanto eles nem os roçam com o dedo (Lc 11,46); e denuncia que guardaram a chave do saber enganando ao povo (Lc 11,52); ridiculariza os fariseus e sua piedade (Lc 18,9-14), assim como questiona o clero, que fica abaixo de um herege samaritano em termos de valorização por parte de Jesus (Lc 10,30-37); desacredita os letrados diante do povo, jogando-lhes na cara que "comem os bens das viúvas com pretexto de rezas longas" (Lc 20,45-47); denuncia que os saduceus não entendem as Escrituras (Mc 12,24); ameaça os ricos, os satisfeitos e os que riem (Lc 6,24-26). No evangelho de João, os enfrentamentos entre Jesus e os dirigentes judeus se repetem constantemente. É verdade que João não especifica, como o fazem os Sinóticos, a que grupos dirigentes fala Jesus em seus repetidos ataques. Mas há que se ter presente que quando Jesus fala dos "judeus", refere-se aos dirigentes, a não ser que o contexto indique outra coisa. Pois bem, a esses dirigentes diz Jesus que nem escutam a Deus nem observam sua mensagem (Jo 5,38); joga-lhes em rosto que só procuram honras e não levam dentro o amor de Deus (Jo 5,4144); chama-os idólatras, o que eles interpretam como se lhes chamasse filhos de má mãe (Jo 8,41); diz-lhes que não conhecem a Deus (Jo 8,54-55) e os qualifica de ladrões e bandidos (Jo 10,8).
Se todas estas coisas não estivessem nos evangelhos, resultar-nos-ia quase impossível acreditar nelas. Ninguém que tenha sido formado pela catequese tradiconal imagina a Jesus falando desta maneira, porque a imagem que dele nos ofereceu a pregação e a literatura religiosa é completamente distinta. Entretanto, aí estão os testemunhos dos quatro evangelhos, para nos dizer até que ponto a imagem usual de Jesus, como uma pessoa doce e inofensiva, avessa aos conflitos e tímida, é completamente falsa. Por outra parte, é evidente que se tirarmos dos evangelhos tudo o que se refere aos enfrentamentos de Jesus com os dirigentes do povo, mutilamos essencialmente aquilo que a mensagem do Novo Testamento nos quer transmitir. E o que nos quer transmitir é muito claro: que Jesus foi o mais radical de todos os profetas, porque não transigiu com a injustiça e a opressão que as classes dirigentes exerciam sobre o povo, falseando dessa maneira o significado da religião.
Por isso a Teocracia que dominava seu povo e a Pax Romana que o tiranizava com poder estrangeiro vão decidir por sua morte. Era incômodo demais para estar vivo.
Fonte: http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=151
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