06 abril, 2013

Jürgen Moltmann: uma teologia amante da vida

Firmada no dia da Páscoa de 2006, por ocasião de seu 80º aniversario, saiu nestes meses com o título “Vasto spazio. Storia di una vita" (Original alemão: Weiter Raum. Eine Lebensgeschichte - Vasto espaço. História de uma vida, em tradução livre;), Queriniana 2009, na tradução ao italiano de Daria Dibitonto, a autobiografia de Jürgen Moltmann, conhecido em todo o mundo como o teólogo da esperança.

Nascido em campo aberto, num casebre rústico perto de Hamburgo, a grande cidade hanseática da Alemanha, em 1926, ele chegou em tempo de ser arrolado na Wehrmacht aos 17 anos, e a transcorrer após a guerra no front holandês três anos de internamento, 1945-1948, em campos prisionais, como prisioneiro de guerra (POW = Prisoner of War) dos ingleses, primeiro na Bélgica, depois na Escócia, e sucessivamente na Inglaterra central, no Norton Camp, perto de Mansfield, em Nottinghamshire.

Proveniente de uma família protestante laica, precisamente atrás da tela espinhosa do campo prisional descobriu a fé em Cristo, lendo os Salmos de lamentação do Antigo Testamento, em particular o Salmo 39, e depois o evangelho de Marcos, em particular a narração da paixão (um capelão do campo distribuíra a Bíblia aos prisioneiros de guerra). Escreve na Autobiografia, em referência a esta experiência prisional: “Readquiri a coragem de viver, e lentamente, mas com segurança, tomou conta de mim uma grande experiência de ressurreição no “amplo espaço” de Deus” (40).

Retornado do cativeiro em 1948 – “eu havia passado mais de cinco anos em casernas, campos, trincheiras e bunker, mas eu vivera algo que teria decidido sobre a minha vida” (45) – opta pela teologia (ao invés de optar por matemática e física), que estuda em Göttingen. Os seus docentes são, entre outros, von Rad para o Antigo Testamento, Bornkamm para os Evangelhos; Jeremias para o problema do Jesus histórico; para as exercitações de homilética Gogarten, que o jovem Moltmann considera “cínico” (53). Mas, seu mestre, que o introduziu à “Dogmática” de Barth, foi Otto Weber, o qual, de resto, introduziu muitos outros estudantes à grande obra barthiana com seu Guia à Dogmática de Karl Barth, que o próprio Barth definia como “mapa de orientação e rebocador de transatlânticos” (como recordo no capítulo dedicado a Barth in “La teologia del XX secolo”, Queriniana 1992, 20076).

Escreve Moltmann: “Após a veneração de Barth, que eu recebera em Göttingen [...] eu pensava que após Barth já não pudesse existir outra teologia, porque ele dissera tudo e o fizera da melhor forma, exatamente como no século 19 se dizia que após Hegel não podia mais existir filosofia. Deste erro libertou-me o teólogo holandês Arnold van Ruler em 1956” (59-60). E, será precisamente Moltmann, com Pannenberg, que realizará uma virada epocal no âmbito da teologia evangélica, introduzindo com grande respiração teorética a categoria de “reino de Deus”.  Os estudos em Göttingen se concluíram com a láurea em 1952. Em Göttingen Jürgen encontra Elisabeth: “Lentamente a minha carceragem interior, que eu escondera por trás do moto de Kierkegaard “desesperado e, contudo confiante”, se dissolveu e minha alma voltou a ser novamente ampla e jubilosa. Em fins de fevereiro de 1950 nos demos nosso primeiro beijo, desfrutando-o um da outra” (60).

Após a láurea em teologia, em Göttingen (1953), seguem os anos do pastorado, a habilitação ao ensino universitário (1956) com Jeremias, que era decano da faculdade de Göttingen, e a primeira docência na Escola superior eclesiástica de Wuppertal (1958-1964), à qual seguiram as universidades de Bonn e Tubinga. Foi decisivo o encontro com van Ruler: “Retornei à teologia contemporânea em 1956 [após a habilitação sobre a história da teologia reformada], graças ao encontro com o teólogo holandês Arnold van Ruler, de Utrecht. Encontrei-o numa conferência de teólogos reformados na Frísia oriental. Levava em frente uma “teologia do apostolado”, uma teologia do êxodo e do reino de Deus. Iniciou sua conferência com a frase: “Sinto o perfume de uma rosa e sinto o perfume do reino de Deus”. Eu jamais ouvira algo do gênero, e nem sequer a Karl Barth isso teria podido vir à mente. Van Ruler me convenceu que Karl Barth não havia dito tudo o que a teologia tinha a dizer naquela época, e nem sequer o havia dito tão bem. Conduziu-me pelos vestígios da esperança, voltada para frente, na escatologia do reino de Deus e de sua justiça sobre esta terra” (80-81). Inicia, então, seu ensinamento em Wuppertal, onde tem como colega o jovem Pannenberg, com um curso sobre o tema do “reino de Deus”. “Lancei-me sobre o “reino de Deus”, sem saber que este tema do futuro me manteria com a respiração suspensa por uma vida inteira” (83).

Outro encontro decisivo é com o filósofo Ernst Bloch, de quem, em abril de 1960, lê com avidez sua vasta obra “O princípio esperança” (1959), e com o qual continuará depois em longo hábito de discussão e de diálogo. “Bloch é, após séculos, o único filósofo alemão que cita a Bíblia em detalhe e com perícia, e que demonstra ser, ao seu modo, um bom teólogo da ”religião do êxodo e do reino”, como ele a chama (98). O ponto de divergência entre o filósofo da esperança e o teólogo da esperança é assim formulado com muita precisão: “Somente quando “a morte for tragada pela vitória”, o “princípio esperança” alcança o seu objetivo (100).

Após as três primeiras secções (juventude, tirocínio, inícios), a quarta secção da autobiografia entra na vitalidade de sua obra teológica: ela se desenvolve por aproximadamente 100 páginas (121-227) e é dedicada à publicação e às reações àquela que continua sendo a obra maior de Moltmann, a “Teologia da esperança”.  São páginas que pertencem não só à “história de uma vida”, mas também à história da teologia do século vinte. O livro sai publicado em outubro de 1964 e recordo havê-lo adquirido em sua aparição na Buchmesse [feira do livro] daquele ano, publicado pelo diretor da Casa editora, Fritz Bissinger, que aqui é citado. A obra será publicada em tradução italiana, realizada sobre a terceira edição alemão (1965), aumentada por um importante Apêndice, e inserida na “Biblioteca de teologia contemporânea”, em 1970, numa ótima tradução do teólogo valdez Aldo Comba. Recorda Moltmann: “O livro “explodiu”, como se costuma dizer” (124) na Alemanha e nos Estados Unidos; “Era um grande período” (174); “Com a “Teologia da esperança” era minha intenção restituir à cristandade sua esperança autêntica para o mundo. Assim, acolhi criticamente as esperanças num “mundo sem Deus”, recolhidas por Ernst Bloch, para colocá-las em relação com o “Deus da esperança” (Rm 15,13 da tradição judaica e cristã” (127-128).

A quinta secção (181-227) reconstrói e narra “os irrequietos anos de 1968 a 1972 em Tubinga, sob o ensinamento da teologia política” (183). Aqui Moltmann faz um interessante destaque sobre o colega católico Joseph Ratzinger. Ratzinger havia escrito in “A minha vida” (1998): “Quase contemporaneamente à minha chegada, na faculdade evangélica de teologia foi chamado Jürgen Moltmann que, em seu fascinante livro Teologia da esperança, repensava completamente a teologia a partir de Bloch” e ressaltava a passagem cultural nas universidades de uma atmosfera existencialista (Heidegger/ Bultmann) a um clima turbulento de cunho revolucionário-marxista, também pela presença de Bloch. Explicita Moltmann: “Ratzinger não entendeu, então, que com Bloch e comigo não era a idéia marxista, mas a esperança messiânica que se tornava a alternativa antiexistencialista” (200-201). São os amigos, nos quais se afirmam em campo internacional os “teólogos da esperança”: Moltmann, Pannenberg e Metz, também chamados os Hope-boys [os garotos da esperança](208).

À “Teologia da esperança” (1964) segue, em 1972, “O Deus crucificado” (que chegou prontamente em edição italiana em 1973, na tradução do teólogo friulensse dom Dino Pezzetta, que traduziu para a Editora Queriniana quase toda a obra de Moltmann). O livro desenvolve uma teologia da cruz, à qual é dedicada a parte sexta. No testemunho do teólogo anglicano Richard Bauckmann, ali citado (231): “É um livro apaixonado, escrito, por assim dizer, “com o coração e o sangue”, como Moltmann disse em seguida”. É uma teologia da cruz, que desenvolve o tema do sofrimento de Deus, que suscitou uma grande disputa. Confessa Moltmann: “Mais importantes para mim são as dimensões de conforto oferecidas por esta teologia da cruz: “Somente o Deus sofredor pode ajudar”, escrevia Dietrich Bonhoeffer em sua cela de prisão, e com isso entendia o Cristo crucificado. Sua cruz está entre as cruzes das vítimas da injustiça e da violência como sinal de que o próprio Deus participa da nossa dor e a torna parte de sua própria e compartilha da nossa preocupação” (240). A tese foi discutida e criticada por Rahner, Metz, Küng, e de modo violento por Dorothee Sölle, mas também encontrou consensos: “Recebi muito rapidamente um vigoroso apoio por parte da teologia anglicana. [...] Encontrei consenso entre as fileiras da teologia da libertação em Jon Sobrino e Leonardo Boff e entre as da teologia minjung de Ahn Byung-Um, mas, com minha surpresa, também na România, da parte do sábio professor de teologia ortodoxa e espiritualidade Dumitru Stàniloae, que considerava a dor de Deus inclusive no conceito do Deus misericordioso. Com Hans Urs von Balthasar me liguei tão a fundo que sua teologia da cruz foi definida “um pendor católico da reflexão de Moltmann” (U. Ruh)” (246).

A fase da teologia da esperança (1964-1975) se conclui com a terceira obra, “A Igreja na força do Espírito”, de 1975, que não tem a organicidade das duas grandes obras precedentes: “O livro sobre a Igreja enfrenta uma série de temas e não só um tema central, como fazem Teologia da esperança e O Deus crucificado” (251). Não faltam, no livro, reflexões e propostas inovadoras, como aquela, já avançada (203), que destina a celebração da Santa Ceia a todos e à qual são convidados os humildes e os opressores, enquanto o batismo deveria ser reservado aos crentes. A proposta suscitou uma dura crítica da parte católica (Kasper: reconstruo a disputa in “A teologia de Jürgen Moltmann”, Queriniana (1975). Ora, Moltmann confessa: “Talvez, no entanto, esta proposta não era particularmente sábia” (251).

Na parte sétima (345-425), Moltmann continua sua narração, concentrando-se em particular nos últimos 15 anos de sua docência em Tubinga, de 1980 a 1994, na qual realiza uma série de Contribuições sistemáticas de teologia em seis volumes, que não se apresentam como uma “teologia sistemática”, e sim como uma teologia dialógica e processual, mas que não renuncia a “propostas próprias” (348) como “teologia a caminho pelas estradas do mundo e no tempo” (348-349). Este modo de fazer teologia “em termos de desafios e de realizações” (356) vai sob o nome, cunhado por Pannenberg (356), de “novo pensamento trinitário”. Neste itinerário despontam duas obras, “Deus na criação”, que deriva das Gifford Lectures em Edimburgo, no ano de 1985, e onde desenvolve uma teologia ecológica da criação; e “O espírito da vida”, de 1991, onde desenvolve uma pneumatologia integral, da qual brotaram um novo amor pela vida, uma cultura da vida e, não por último, uma nova espiritualidade dos sentidos, do corpo e da terra” (358).

E assim, o percurso da teologia de Jürgen Moltmann parte de uma teologia da esperança para dilatar-se numa teologia da vida que encontra expressão também na prece, com a qual se conclui a Autobiografia, que, no título do livro, se inspira no Salmo 31,9: “Guiaste os meus passos no vasto espaço”.

Pergunta-se o teólogo: “O que amo quando amo Deus? Uma tarde, li nas Confissões de Agostinho, livro X 6, 8: “Mas, o que amo quando te amo? Não a beleza de um corpo, nem a atração da vida, nem o esplendor da luz, amiga destes meus olhos, não as doces melodias de uma infinita variedade de cantos, nem o suave odor de flores, ungüentos e aromas; não o maná e o mel, nem os membros gratos aos amplexos da carne; não é isto que amo quando amo o meu Deus. Existe, no entanto, certa luz e certa voz, certo perfume e certo alimento e certo amplexo que amo quando amo o meu Deus: a luz, a voz, o perfume, o alimento, o amplexo do homem interior que está em mim, onde minha alma é inundada pela luz que o espaço não contém, onde há uma música que o tempo não segura, onde há um perfume que o vento não dispersa, onde há um sabor que a voracidade não extingue, onde há uma união que a saciedade não alenta. É isto que eu amo quando amo o meu Deus”.

E naquela noite lhe respondi: Quando amo Deus, amo a beleza dos corpos, o ritmo dos movimentos, o esplendor dos olhos, os abraços, os sentimentos, os perfumes, os tons desta colorida criação. Tudo eu gostaria de abraçar, quando te amo, meu Deus, porque te amo com todos os meus sentidos nas criaturas do teu amor. Tu me atendes em todas as coisas que eu encontro. Por longo tempo te procurei dentro de mim, me escondi na concha de minha alma e me defendi com a couraça da não aproximação; mas, tu estavas fora de mim e me atraíste pela estreiteza do meu coração no amplo espaço do amor pela vida. Assim saí de mim mesmo, encontrei minha alma nos meus sentidos e descobri aquilo que mais me pertence nos outros. A experiência de Deus aprofunda a experiência da vida e não a reduz, porque desperta a força de dizer incondicionadamente sim à vida. Quanto mais amo Deus, mais estou feliz de existir; mais existo plena e diretamente, mais percebo o Deus vivo, a fonte inexaurível da vida e a vitalidade eterna” (422-423).

Fonte: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=13092&cod_canal=46

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