12 abril, 2013

Ecologia como ética, ciência e paradigma

Afonso Murad

A palavra “ecologia” tem muitos sentidos e conotações. Para efeito didático, selecionaram-se aqui três dimensões básicas que se implicam neste conceito. A ecologia é simultaneamente: (1) movimento planetário de natureza ética, (2) ciência e (3) paradigma. Pode-se começar com qualquer um deles, pois estão intimamente relacionados. Cada dimensão oferece possibilidades de diálogo com a fé cristã e o seu saber, a teologia. Partiremos da dimensão ética e prática, considerando que as ações humanas são “ato primeiro”, parafraseando G. Gutiérrez.

A ecologia como ética e prática

Basta abrir jornais e revistas, ouvir noticiários na rádio, ou percorrer os canais de TV em diversos programas, para se dar conta de que a questão ambiental está presente na mídia quase todos os dias. Ela aparece como constatação (“o meio ambiente está cada vez mais fragilizado, devido à ação humana”) e interpelação (“é necessário fazer algo para mudar esta situação”). Aqui reside o caráter ético da ética. Responsabiliza-se o ser humano pela crescente destruição das “comunidades de vida” ou ecossistemas e pede-se dele uma nova postura.

Enquanto ética e prática, a ecologia constitui um amplo movimento, no qual fazem parte cidadãos comuns, ambientalistas, ONGs, grupos religiosos, pesquisadores e empreendedores. O que os reúne é o compromisso de fazer algo para o bem do planeta. O movimento ecológico não tem hierarquia nem mecanismo de controle ideológico. Organiza-se sobretudo como rede em torno a causas comuns, de diferentes amplitudes. Desde a ação local para manter limpo um riacho em determinada cidade, até o protocolo intergovernamental de abrangência mundial, para reverter o aquecimento global. No Brasil, há na Internet muitas redes de informação e mobilização em torno da questão ecológica. Por exemplo, a rede brasileira de educação ambiental (REBEA), e a rede em torno das mudanças climáticas (PROCLIMA). Nelas se divulgam informações, opiniões, estudos. E se convoca à participação em eventos e ações conscientizadoras.

O movimento ecológico emite um juízo de valor sobre a relação do ser humano com o meio ambiente. E o interpela, para que reverta os processos de destruição dos ecossistemas e assuma sua responsabilidade pelo presente e pelo futuro de nosso planeta. Tem, portanto, uma dupla vertente de valoração e de ação.

Uma parte significativa do movimento ecológico desenvolve um olhar crítico sobre as estruturas sócio-político-econômicas que regem a economia de mercado, no mundo globalizado. O atual modelo civilizatório exige cada vez mais energia, explora irresponsavelmente recursos finitos e desestrutura os ecossistemas. Está intimamente conectado com o capitalismo internacional. O mesmo sistema que concentra riqueza, exclui nações e povos, também explora e destrói o meio ambiente. Somente uma mudança radical, fora da economia de mercado, tornaria o nosso planeta viável no presente e no futuro. O próprio conceito de desenvolvimento precisa ser revisto.

Outras correntes defendem a bandeira do desenvolvimento sustentável, dentro do capitalismo. Trata-se de investir na ciência e na técnica, aperfeiçoar e corrigir os mecanismos de produção, consumo e descarte dos produtos, reduzir a poluição e aumentar a ecoeficiência. Apelam para um crescente compromisso dos cidadãos e das empresas, no sentido de minimizar o impacto ambiental. Exigem crescentes avanços na legislação dos países, para coibir abusos e punir crimes ambientais. Postulam uma governança planetária, mediada por protocolos e convenções que estabeleçam metas e compromissos das nações com o planeta.

A ecologia recoloca a questão dos valores, do cuidado com a vida, de forma duradoura. O conceito de sustentabilidade ecológica foi introduzido na década de 80 por Lester Brown. Mais tarde, no Relatório Brundtland (1987) se fala em desenvolvimento sustentável, como satisfazer “as necessidades da atual geração, sem comprometer as das gerações futuras”. Assim, sustentabilidade é o somatório de processos que visam garantir a continuidade da qualidade da vida para as novas gerações de seres humanos, animais, plantas e microorganismos.

O conceito de sustentabilidade sofreu uma evolução no correr dos últimos anos. Originalmente, no movimento ecológico, significava garantir a continuidade das “comunidades de vida” e o equilíbrio dos ecossistemas, no presente e no futuro. Tinha assim uma conotação exclusivamente ambiental. Mas o termo foi apropriado pelos gestores de empresas do mercado global, passando a significar a viabilidade e a continuidade de um negócio ou empreendimento. Também os líderes governamentais passaram a usar este termo, para sinalizar se determinadas políticas tinham perspectiva de continuidade em longo prazo. O Fórum Social Mundial levantou a bandeira da “insustentabilidade” do atual mercado global, especialmente em termos sociais. E propugnou um “novo mundo possível e necessário”, com formas diversas de produção, consumo e inclusão. Deste “conflito de interpretações” nasce o termo atual, que inclui a simultaneidade de aspectos ambientais, econômicos e sociais.

Gestão e educação ambientais

A ecologia não é uma ética abstrata, restrita a conselhos generalizados. Ao contrário, ela se traduz em dois grandes instrumentais práticos: a educação ambiental e a gestão ambiental. A primeira significa a somatória de processos que visam criar uma nova mentalidade e posturas correspondentes, na relação do ser humano com o nosso planeta, enquanto a “casa comum”. Sua abrangência é vasta, pois visa a reeducação da humanidade, em termos de percepção do mundo e dos valores que a orientam. A educação ambiental não veicula somente informações sobre o meio ambiente, mas também apura a sensibilidade, faz refletir sobre o sentido da atuação humana no ecossistema, e suscita ações individuais e coletivas, conferindo poder à comunidade local como protagonista de mudança.

Em vários cantos do mundo, a Educação Ambiental se desenvolveu, na sociedade civil e com estímulo do poder público. Na esfera da sociedade civil brasileira, criam-se ONGs e associações que promovem a consciência ecológica e o compromisso com a sustentabilidade junto às comunidades locais. Vários movimentos sociais incorporam a questão ambiental nas suas lutas. A Campanha da Fraternidade sobre a Água suscita uma série de iniciativas locais de natureza permanente. Escolas introduzem a Educação Ambiental como tema transversal. Empresas patrocinaram iniciativas de educação ambiental. Em âmbito governamental elabora-se a Política Nacional de Educação Ambiental, cujo marco é a lei 9.795/99. O Ministério do Meio Ambiente publica o ProNEA (Programa Nacional de Educação Ambiental), voltado à sociedade, enquanto o Ministério da Educação elabora os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da Educação Ambiental, destinados às escolas. Prefeituras e governos estaduais empreenderam iniciativas e criaram equipes de trabalho de Educação Ambiental. Atuando com diferentes públicos e interlocutores, a educação ambiental visa formar consciência planetária e preparar cidadãos para uma nova percepção do mundo.

A gestão ambiental compreende processos comunitários e institucionais para viabilizar a sustentabilidade. Envolve vários atores sociais, como grupos religiosos e sociais, consumidores, educadores, comunicadores e o poder público. De forma visível, a gestão ambiental tem sido aplicada de forma crescente nas empresas, em resposta à crescente sensibilidade da população para a questão ecológica e às exigências da legislação ambiental. Adotam-se mecanismos para uso racional de água e energia, reduzem-se a quantidade de resíduos e de sua toxidade, racionaliza-se o processo de produção. Cria-se o mote da “produção mais limpa” (P+L). Desenvolvem-se modelos e ferramentas, e sistemas de gestão ambiental (SGA). Consolida-se o processo de certificação ambiental com a norma ISO 14001, de 1996 e 2004.

A educação ambiental e a gestão ambiental fazem a ecologia penetrar no tecido social, nas mentes das pessoas, nas comunidades locais, e nas práticas de produção e consumo. Podem assumir perspectiva transformadora ou manter o sistema que destrói nosso planeta.

Mística que parte da ética

Há uma busca pelo transcendente no meio do movimento ecológico. Ao descobrir as belas conexões ocultas da teia da vida, as múltiplas relações de interdependência entre os seres vivos e os abióticos, as pessoas se extasiam e percebem que há uma dimensão de gratuidade, de mistério, que vai além do âmbito da ciência. Muitos se esforçam para encontrar um sentido integrador da existência pessoal, coletiva e cósmica. Adotam um estilo de vida mais saudável e responsável, em contraposição à lógica desumanizadora da sociedade de consumo. Alguns se servem de diferentes tradições religiosas, para fazer um processo de evolução espiritual, que inclui a integração das pulsões, o autoconhecimento, o equilíbrio energético e a prática da meditação.

Pode-se dizer que há uma “mística ecológica difusa” neste ambiente. Trata-se de uma perspectiva espiritual, sem vinculação à determinada religião. Tomam-se livremente elementos de tradições religiosas diversas, como as “religiões de raiz” ameríndias e as oriundas da África, o hinduísmo e o budismo, o esoterismo moderno, e até mesmo o cristianismo. Tende-se a um Deus impessoal, pura energia que circula no cosmos (imanente). O divino estaria no TODO (panteísmo).

A ecologia como ciência e paradigma

Enquanto ciência, a ecologia nasceu da biologia. Inicialmente, era compreendida como o estudo dos seres vivos em relação com o seu habitat. Daí evoluiu para a ciência que estuda as condições de existência dos seres vivos e todas as interações possíveis entre estes e o seu meio. Literalmente, ecologia quer dizer o estudo ou discurso racional (logos) sobre a casa-Terra (oikos). Segundo F. Capra, a ecologia é o estudo de como a Casa Terra funciona, ou seja, as relações que interligam todos os moradores da nossa Casa comum. Constituem esta casa os seres abióticos e bióticos. Os primeiros, embora literalmente signifiquem “sem vida”, são fundamentais para os ciclos de matéria e energia no planeta: o solo, a água, o ar e a energia do sol. Os seres bióticos, por sua vez, compreendem os microorganismos (como bactérias, fungos e algas), as plantas e os animais. E entre os animais, estamos nós, os seres humanos.

Cada ciência tem objeto específico, perspectiva, epistemologia, método, jogo lingüístico próprio e comunidade validante. O objeto da ecologia são os ecossistemas: resultado das interações entre o conjunto de seres abióticos e os seres vivos em determinado contexto geográfico. Ecossistemas são redes de relações, das quais faz parte a ocupação humana.

A ecologia não é “um saber sobre a natureza”, e sim a ciência sobre a relação entre todos os seres, que torna possível a continuidade da vida no nosso planeta. No atual contexto planetário, ela pesquisa como o ser humano, ao conviver em determinados biomas, altera os biomas e o ecossistema. E também a busca de reequilíbrio. Por isso, não é a ciência da preservação, mas da gestão racional e sustentável dos recursos naturais, compreendidos no quadro mais amplo das “comunidades de vida”.

A mediação hermenêutica da ecologia se tornou tão importante quanto seu objeto de estudo. Já para Ernest Haeckel (+ 1919), primeiro formulador do conceito, a originalidade da ecologia consiste em superar o estudo isolado dos seres bióticos e abióticos, ao perceber as relações entre eles. Daí nasce a compreensão de “ambiente”, que é muito mais do que fauna e flora.

Ao dar o salto para um “saber de relações”, a ecologia postula uma mudança na forma de exercitar a ciência e na auto-compreensão do ser humano. L. Boff diz que a singularidade do saber ecológico consiste na transversalidade, isto é, “relacionar pelos lados (comunidade ecológica), para a frente (futuro), para trás (passado) e para dentro (complexidade) todas as experiências e todas as formas de compreensão como complementares e úteis no conhecimento do universo, na funcionalidade dentro dele e na solidariedade cósmica”.

Leonardo Boff define paradigma como “uma maneira organizada, sistemática e corrente de nos relacionarmos com nós mesmos e com todo o resto à nossa volta. Trata-se de modelos e padrões de apreciação, de explicação e de ação sobre a realidade circundante”. H. Küng distingue a extensão e a profundidade dos paradigmas, enquanto modelos de compreensão, classificando-os em macroparadigmas, mesoparadigmas e microparadigmas. Ora, a ecologia se transformou em macroparadigma, porque está alterando a autocompreensão do ser humano, que foi gerada na modernidade.

A aventura da modernidade caracteriza-se pelo antropocentrismo, pelo advento do sujeito autônomo (subjetividade) e pela universalização da ciência aplicada. Gesta-se uma visão linear e otimista da história, com a ilusão do “progresso infinito” e do “desenvolvimento ilimitado”. Os ecossistemas e suas comunidades de vida são reduzidos a “recursos naturais”. O mundo parece um reservatório infinito, do qual se pode retirar todo o necessário para produzir, vender e consumir. Ora, o paradigma ecológico questiona esta visão, por três vias.

a) A ecologia corrige e aperfeiçoa o antropocentrismo. O ser humano está no centro, mas junto com os outros seres, em busca de comunhão. É filho(a) da Terra, a própria Terra em sua expressão de consciência, de liberdade e de amor. O destino do ser humano está associado ao destino do cosmos. Superando o antropocentrismo egóico da modernidade, afirma-se que há uma circularidade: o universo é direcionado para o humano como o humano é voltado para o universo donde proveio. Pertencem-se mutuamente.

b) O paradigma ecológico revisa a subjetividade moderna, a partir das categorias “diversidade” e “interdependência”. Um dos princípios da ecoalfabetização, propugnado por F. Capra, é que a biodiversidade assegura a resiliência dos ecossistemas. Quanto mais espécies interagem, maior a resistência e a capacidade de reequilibrar-se. O mesmo vale para a convivência humana. Um ser humano sozinho, concebido de forma individualista, sem relação com os demais, centrado egoicamente em si mesmo, é extremamente frágil. A humanidade evolui e conquista equilíbrios mais complexos quando promove e inclui as diferenças de gerações, de gênero, de etnias e de culturas. A biodiversidade inspira a cultivar a antropodiversidade. O ser humano privado, individualista, competidor estaria condenado ao fracasso, em longo prazo. Os processos evolutivos do nosso planeta mostraram que não foram os mais fortes que sobreviveram, e sim aqueles que conseguiram estabelecer relações fortes de cooperação e interdependência.

c) O paradigma ecológico questiona a forma dominante de elaboração do conhecimento e fornece elementos para uma nova epistemologia. A ciência experimental, que define hoje nossa relação para com o universo, envolve duas dimensões constitutivas: compreender e modificar. Transformou-se numa forma de domínio, pois saber é controlar e objetivar. A ciência moderna negou a legitimidade de outras formas de diálogo com a natureza. Ora, o saber ecológico utiliza a razão instrumental da ciência moderna, mas também valoriza a razão simbólica e cordial (do coração), usa os sentidos corporais e espirituais. Assume que somos razão e afetividade. Assim, conhecer não é somente uma forma de dominar a realidade, mas também de entrar em comunhão com os outros seres. O sujeito pensante é parte do processo da realidade e de seu conhecimento reflexo.

Em síntese, um conceito abrangente de ecologia deve contemplar, no mínimo, estas três dimensões: ética, paradigma e ciência.

Fonte: http://ecologiaefe.blogspot.com.br/search/label/paradigma%20ecol%C3%B3gico

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